A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA (1965)
04/04: O RETORNO DE "A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA"
por Liberati

Numa manhã desse Abril despedaçado, (ou foi em Março estilhaçado?), ouvindo rádio, fui atingido por uma entrevista de André Paes Leme que adaptou o conto “A Hora e a vez de Augusto Matraga” de Guimarães Rosa para o teatro, agora em forma de um musical. A ousadia “estética” está em cartaz no Teatro Sesc Ginástico. Num certo momento, o apresentador perguntou se o diretor sabia da existência de um filme sobre o mesmo conto. O encenador, disse que sabia, mas disse isso de uma maneira um tanto “imperfeita” , digamos, num tom que me pareceu não conferir a este filme a importância devida. Achei que essa forma de tratar esse trabalho, foi desrespeitoso, ao não dizer que se trata de uma obra-prima cinematográfica, que simplesmente foi dirigida por Roberto Santos, um gênio da nossa raça.

Isso me deixou cabreiro. O Brasil esquece rapidamente tudo. Coisas boas e ruins vão da mesma maneira para os empoeirados arquivos mortos da nossa memória nacional.

Então, saquei lá do fundo dos meus papéis, uma matéria que escrevi a propósito da exibição desse filme num dia de novembro de 1997 no Espaço Unibanco de Cinema em Botafogo.

Pois é, quem diria que Nhô Augusto, filho do coronel Afonsão Esteves, também conhecido como Augusto Matraga, personagem de um dos contos de Sagarana iria dar as caras num cinema bacana da Zona Sul do Rio de Janeiro? E ele veio inteiro, remontado, em cópia nova. Deveria passar nos cinemas pelo menos uma vez por ano, para dar ao público jovem a oportunidade de conhecer um tesouro da nossa cultura. Terminado em 1965, o filme foi visto pelo próprio Guimarães Rosa numa sessão especial organizada pelo Estúdio Líder em Botafogo. (Que coincidência o filme voltar 32 anos depois para o mesmo bairro!) Quando as luzes acenderam, o escritor disse ao diretor: “Estamos vingados!” Decerto ele se referia a uma adaptação cinematográfica equivocada de Grande Sertão – veredas feita pelos irmãos Santos Pereira.

Talvez, sem querer, também estava advinhando o que se passava no íntimo do cineasta, já que a excelência e a perspectiva de sucesso de “A Hora e a vez” não deixou também uma vingança para Roberto dos Santos. O cineasta vinha amargando oito anos de trabalho fazendo fitas comerciais para sobreviver depois da desastrosa estréia de seu primeiro longa, “O grande momento”. Filme feito dentro do modelo neo-realista, marco do cinema urbano, e que foi, por uma grande infelicidade lançado em meio às festas de final de ano de 31 de dezembro de 1958, numa noite de garoa típica de São Paulo, com o cinema isolado por cordas para facilitar o grande evento da noite: a corrida de São Silvestre.

Em “A Hora e a Vez…”, Roberto dos Santos passou para o ambiente rural ao encontrar no texto de Guimarães Rosa quase um roteiro pronto, que soube transpor para a linguagem cinematográfica com uma maestria que não se repetiria. O filme conta de forma seca, econômica e comovente a história da decandência, flagelo e rendenção de Augusto Estêves das Pindaíbas e do Saco-da-Embira, um homem violento e mandão que, além de perder o poder, leva uma surra, é dado como morto e, para arrematar, sua mulher foge com outro homem. Bicho ruim, ele se recupera e tenta sua volta por cima: -“Eu vou p’ra o céu e vou mesmo, por bem ou por mal!…E a minha vez há de chegar. P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!…”

Só que no meio do caminho encontra com o chefe maior da jagunçagem, “o homem mais afamado dos dois sertões do rio, o arranca-toco, o treme-terra, o come brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe e arrasa: Seu Joãozinho Bem-Bem.”

Neste filme, Roberto dos Santos mostra a sua famosa capacidade de dirigir atores. O desempenho de Leonardo Villar é impresionante, além disso a fotografia de Helio Silva captura em preto e branco as sutilezas das cenas, segundo o próprio diretor, Silva “soube redescobrir a beleza da paisagem mineira.” Para completar, além de belas tomadas, silêncios eloqüentes, o filme conta com uma trilha sonora feita por Geraldo Vandré em sua melhor forma.

Mas, “A Hora e a Vez…” se transforma num problema para seu realizador: por ser um dos mais vigorosos trabalhos do chamado Cinema Novo até então, ele vira uma marca a ser superada. A partir deste filme, Roberto Santos será implacavelmente cobrado pela crítica e pelo público, que exige dele uma outra hora e uma outra vez.

O cineasta, no entanto, vivendo numa época cheia de dificuldades para produzir filmes, construiu, no que se pode chamar de segunda fase de seu cinema, um trabalho irregular. Nessa hora difícil, ele alcança momentos criativos que não vingam e outros em que fracassa totalmente. São desta fase: o episódio de “As cariocas; A desinibida do Grajaú”, de 1966 (baseado no texto de Sérgio Porto – o Stalislaw Ponte Preta); a primeira versão de “O Homem Nu” (baseado em texto de Fernando Sabino), com Paulo José no papel principal (1968); e um episódio de “Vozes do Medo”, uma criação coletiva de 1970 que foi censurada. Depois fez “Anjo Mau”, em 1971, “As Três Mortes de Solano”, em 1973, “Os amantes da chuva”, em 1979, Nasce uma mulher, em 1983. Já perto do final de sua vida, em 1987, ao mesmo tempo em que filmava “Quincas Borba”, ele se digladiava com os herdeiros de Guimarães Rosa, que se opunham à adaptação de Manuelão e Miguilim”

O trabalho de Roberto Santos está associado à visão do que se chamava na época de Cinema Novo e está intimamente ligado a Nelson Pereira dos Santos, com quem começou a trabalhar em 1955 em “Rio 40 Graus” como assistente: “Nelson, como eu, fomos conscientemente aqueles caras que mais do que patrocinadores ou orientadores de um novo cinema, desempenhamos o papel de destruidores de um velho cinema. Eu acho que nossa resposta veio muito mais de uma necessidade de quebra do que de construção.”

Apesar das explicações tóricas e preocupações formais, o que se percebe é que havia na sua forma de fazer cinema algo de intuitivo e passional. Ele mesmo disse uma vez: “Tudo que eu fiz sempre ficou muito ligado a minha vida passional e íntima. Eu me apaixonei pelo cinema quando me apaixonei pela minha mulher.”

Pertencia à geração que se formou durante o período da democracia populista que assolou o país entre os anos de 1945 e 1964, época em que o pensamento brasileiro se interessou pelo homem comum, como definiu Octavio Ianni em seu ensaio “A mentalidade do homem simples”: “Pela primeira vez o homem comum foi encarado em toda a sua integridade. Abandonou-se a visão externa, episódica e anedótica dos seus problemas.”

Roberto Santos disse várias vezes que sua preocupação era filmar o homem comum. Em “O grande momento”, ele captura de forma lírica um fragmento da existência de dois jovens pobres no dia de seu casamento. Em “A Hora e a Vez…”, ele captou as duas veredas fundamentais da vida dos homens simples: o misticismo e a violência.

Quanto ao filmes de sua segunda fase, disse que fazia parte da grande “trapalhada do cinema brasileiro.”

Ironicamente morreu aos 59 anos, em 1987, depois de ter sofrido um ataque cardíaco e críticas ácidas no 15º Festival de Gramado, quando apresentou seu filme “Quincas Borba”, cujo tema principal era a morte. O diretor e ator Paulo José, numa declaração feita neste dia, definiu bem sua “causa mortis”: O que matou Roberto Santos foi a frustração do cinema brasileiro. Há pelo menos 20 anos ele era um homem amargo, frustrado pela impotência diante de condições adversas”.

Portanto, quando alguém se lembrar de Roberto Santos e seu filme “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” não o faça de forma imperfeita. Respeite a sua história. Diga que ele foi grande numa época pequena. Talvez soe melhor.